Nos últimos anos, o uso de aplicativos que oferecem karaokê, transmissões ao vivo e salas de bate-papo por áudio e vídeo tem crescido exponencialmente, inclusive entre jovens e crianças. Entre esses, um aplicativo chinês conhecido mundialmente ganhou destaque não apenas pela popularidade, mas também por denúncias graves relacionadas à segurança de menores.
Segundo um ex-administrador oficial da plataforma, que atuava com dois perfis distintos — um voltado ao suporte e moderação e outro para infiltração investigativa —, o ambiente do aplicativo se tornou um espaço altamente vulnerável a abusos e crimes contra crianças e adolescentes.
Por Paulo Roberto – Plantão da Treta
Publicado em 27/06/2025 às 08:00
O que está acontecendo dentro do aplicativo?
Apesar do app ser classificado para uso exclusivo de maiores de 18 anos, não existe um sistema eficaz de verificação de idade. Isso permite que crianças e adolescentes acessem o ambiente livremente, criem perfis falsos e participem de salas de áudio e vídeo, interagindo com usuários adultos — muitos deles com intenções criminosas.
O ex-administrador, que preferiu manter sua identidade reservada, relata que atuava com dois perfis:
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Dr. Resolve: perfil oficial para suporte, resolução de problemas e análise de denúncias.
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Piti Bicha: um personagem cômico e carismático criado para infiltrar-se em salas suspeitas, identificar comportamentos abusivos e coletar evidências.
Ele afirma que conseguiu identificar vários perfis abusivos, capturando imagens, vídeos e registros de IPs, e encaminhou esses materiais à Delegacia de Crimes Cibernéticos, mas nenhuma providência concreta foi tomada até o momento.
O que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)?
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) é a principal legislação brasileira que assegura os direitos das pessoas com até 18 anos incompletos, garantindo proteção integral contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Alguns artigos que se aplicam diretamente ao contexto de uso de plataformas digitais e proteção online são:
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Art. 5º: Toda criança e adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
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Art. 17: A criança e o adolescente têm direito a respeito, sendo-lhes assegurado, entre outros direitos, o sigilo da identidade em procedimentos judiciais e administrativos.
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Art. 18: É dever de todos velar pela dignidade e pelos direitos da criança e do adolescente.
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Art. 71: É proibida qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão contra a criança e o adolescente.
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Art. 241: "Injúria, difamação ou ameaça praticada contra criança ou adolescente" são consideradas infrações penais, com penas previstas no Código Penal.
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Art. 241-A: Prevê punição para quem utiliza meios eletrônicos para praticar crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes.
Esses dispositivos deixam claro que qualquer exposição de crianças a ambientes digitais inseguros, onde há risco de abuso, assédio ou exploração sexual, configura violação legal grave e pode levar à responsabilização criminal e administrativa de envolvidos, incluindo plataformas que não tomem medidas preventivas adequadas.
Aplicativos sem controle? Um perigo real
A ausência de mecanismos rígidos de controle e a facilidade de criar perfis falsos fazem com que esse tipo de aplicativo seja, na prática, um terreno fértil para abusadores que se aproveitam da vulnerabilidade dos menores.
A função de salas privadas de áudio e vídeo, especialmente aquelas que podem ser fechadas a qualquer momento, facilita que crimes digitais, como assédio e abuso, aconteçam sem que haja testemunhas ou moderação em tempo real.
Segundo relatos do ex-administrador, abordagens suspeitas e conotações inapropriadas são constantes, e muitos usuários abusivos se camuflam atrás de personagens e perfis falsos para escapar da fiscalização interna.
A negligência das autoridades e da plataforma
Mesmo com denúncias formais, que incluem material probatório, a resposta do poder público tem sido insuficiente, segundo o ex-admin. O Ministério Público e as Delegacias Especializadas em Crimes Cibernéticos parecem não agir com a velocidade e intensidade necessárias para coibir esses crimes.
Além disso, a plataforma em questão não apresenta um sistema efetivo para impedir o acesso de menores nem uma fiscalização rígida das interações, o que contribui para a perpetuação da vulnerabilidade dos usuários mais jovens.
O papel das famílias e da sociedade
O ECA determina que é dever da família garantir a proteção integral dos menores, inclusive em ambientes digitais (Art. 227 da Constituição Federal). No entanto, muitos pais e responsáveis não estão atentos ao que seus filhos fazem em apps e redes sociais, desconhecendo os riscos envolvidos.
Por isso, a educação digital e o acompanhamento parental são essenciais para minimizar a exposição dos jovens a esses perigos.
O que pode ser feito?
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Fiscalização mais rigorosa: O Estado precisa fortalecer o combate aos crimes digitais, atuando rapidamente diante das denúncias e exigindo que as plataformas adotem mecanismos eficazes de prevenção.
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Verificação de idade: As plataformas devem implementar sistemas robustos que impeçam menores de 18 anos de acessarem conteúdos e ambientes inadequados.
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Educação e conscientização: Campanhas voltadas a famílias, escolas e jovens sobre os riscos do uso irresponsável da internet e redes sociais.
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Responsabilização das plataformas: Aplicativos devem ser obrigados a monitorar, moderar e remover conteúdos e usuários que violem os direitos de crianças e adolescentes.
Conclusão
Enquanto não houver ação conjunta e efetiva de autoridades, empresas e famílias, o risco de exposição e abuso de menores continuará presente em aplicativos que deveriam ser ambientes seguros ou, no mínimo, restritos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro ao garantir a proteção integral dos direitos dos jovens, e é responsabilidade de todos assegurar que isso aconteça também no universo digital.
Matéria jornalista investigativo Paulo Roberto para o Plantão da Treta
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